terça-feira, 25 de dezembro de 2018

POEMAS, Ismael Pereira

POEMAS, Ismael Pereira, 2018, Aracaju, J Andrade, 2018, 316 página 21 cm isbn 978-85-8253-295-9




Ismael faz uma festa inesquecível nos lançamentos de suas telas (exposições). Ele envia o convite individual, telefona em seguida, pode bater à nossa porta. Difunde nas redres sociais e nas mídias.  No dia do evento, recepciona com mil tapetes vermelhos cada um que aparece. E nos dias que seguem, agradece, um a um, pelo prestígio que diz ter usufruído com a nossa presença na festa. Isso é espetacular e me lembra os cursos de vendas que fiz na vida, que não dei importância e, talvez por isso, fracassei na arte de encantar o cliente.

Eu não pude ir ao lançamento do livro, Poemas, ocorrido outro dia. 


Obrigações acadêmicas em Itabaiana, nas comemorações do colégio Murilo Braga, que aniversaria em 29 de novembro, mantiveram-me, no mesmo horário, conduzindo uma sessão solene da Academia Itabaianense de Letras.

Mesmo faltando à festa de Ismael que eu fazia questão de participar e não pude, no dia seguinte, recebi de presente o livro com uma dedicatória, na qual, me chamava de dileto amigo e irmão. E compartilhamos um afetuoso abraço que me encheu de satisfação.

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Eu possuo uma fila amuada de livros esperando serem lidos. E outra fila de livros lidos aguardando que eu diga algo sobre os mesmos. A primeira, postada na estante à minha frente, na mira de minha vista levantada, e, a segunda, na estante atrás de minha cadeira, ao alcance de minha mão estirada. Ambas estão vigilantes o tempo todo, para que eu não as fure. Não sabem brigar, apenas zoam surdas preocupadas porque, cada vez, crescem mais.  

Tomando o lugar e as dores delas, juro que só quebrarei a ordem das filas, se o livro novo que chega for de um irmão, já que meus pais estão no céu. Graças a Deus pude mostrar a dedicatória feita por Ismael, na qual me chama de dileto irmão, que sinto ser também. Por isso, comecei a ler os poemas de Ismael e dizer as palavras soltas que se seguem.

Vi, por detrás de cada um dos poemas, uma tela plástica (gosto mais da palavra pintura) onde o pintor e o poeta mesclam (é a mesma pessoa abençoada) tons e sons dando vida a novos seres que embelezam o mundo em volta. Criam outra natureza que, na falta da feita por Deus cada vez mais depredada pelo bicho homem, encanta quase do mesmo jeito.  

Nem todas as pinturas que saem das mãos de pintores estão ao alcance de meu faro fraco de gué. Nem todos os poemas publicados pelos poetas do mundo dão para meu bico. E quando os dois se misturam nas 150 expressões da mais pura arte que um humano pode gerar, sinto-as escaparem pelos dedos, inapelavelmente. Como se eu estivesse correndo as galerias do museu do Louvre. Ou pulo telas imprescindíveis, ou nunca saio do lugar, vidrado em um da Vinci, um Delacroix, um Veronese, um Goya ou Reimbrant. A arte é inexplicável.  Acho que posso dizer aqui:  Ou as obras me encantam ou não as entendo apenas. Saio dos Poemas de Ismael como quem sai de uma exposição de obras de arte, que pode ser o Louvre, por exemplo. Encantado, e frustrado. Apenas um poema seria suficiente para meu encanto, mas foram muitos. Talvez apenas um que não pude sentir a alma me frustrasse, houve alguns.   

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O poeta Ismael espalhou na cidade que seus poemas continham erros que eu nem percebi. Erros de revisão, ele disse.  E eu cá, pensara, ao me bater com alguns apontados, que fossem toques mágicos da arte.

Já que são erros assumidos, posso também cometer. Vou enumerar alguns poemas que marcaram: Nada Restou (poucos fazem obras eternas); JInácio (paisagens celestiais); Último Sorriso (destino cruel); Aracaju Romântica (bom demais com Murilo Melins);Jogando Caxangá (zique zique zá remonta mundos sumidos);Musa (Izabel, Cida, Amélia, o que seria do poeta sem elas?); Rosas (já que podemos, por que não fazer a vida bela?); Saveiro (carregado de saudades, vai comigo também, rio acima e rio abaixo); Beco dos Cocos (apenas sufraguei momentos rápidos mas marcaram  minha vida), e outros muitos.

Finalizando...

Acho que Ismael percebeu, afinal, que jamais conseguiria pintar todas as telas de que gostaria e resolveu escrever poemas no lugar. Que meu leitor compre uma passagem e veja ele mesmo o que me encantou em Paris. Reserve todo o tempo que puder às galerias do Louvre ou aos Poemas de Ismael.

(por Antônio FJ Saracura, em 25 de dezembro de 2018)    

segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

O ESCRAVO DO DIABO, Odair Silva


O ESCRAVO DO DIABO, Odair Silva, 2017,73 páginas, Lumia escritório de design gráfico, isbn 9 788555123863




Aos treze ou quatorze anos de idade, li, ruborizado, Menino de Engenho, de José Lins do Rego. A seguir, Jorge Amado (não lembro qual livro) pela primeira vez. Fiquei escandalizado. Cenas tórridas, trincando princípios de jamais pecar, por pensamentos palavras e obras. Especialmente contra a carne (nem sei bem por que). Eu era seminarista casto e procedia de um lar rude de agricultores, onde um nome feio pronunciado obrigava-nos a lavar a boca com sabão de soda. Os olhos e os ouvidos eram a porta aos cochichos do diabo, ao fogo do inferno.

Quando li Trópico de Câncer e Trópico de Capricórnio, de Henry Miller, fiquei perplexo: coisas impublicáveis compunham um romance e o mundo curvava-se a ele como uma obra de arte literária. Eu já havia saído do seminário e não tinha mais medo do inferno, mas zelava pela boa convivência com uma sociedade das aparências puras.
E mais tarde, quando li Cinquenta Tons das várias cores, mesmo já batizado nas pias do mundo erótico e, sendo um pecador condenado, meu queixo dobrou, minhas orelhas queimaram. Não apenas pela cenas tórridas nas quais me envolvi. Especialmente, pelas filas de jovens (meninas e meninos ainda na adolescência) que se formavam nas livrarias e bienais, comprando os livros de E. L. James. E também pelos cinemas lotados para assistir os filmes.  Também porque todos comentavam, com naturalidade, as intimidades profundas da alcova de Christian Grey e Anastasia Steele.

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O Escravo do Diabo é um livro de 93 páginas, e saiu de uma pena rude, e veio ao mundo em uma pequena cidade religiosa e que tem o nome de Nossa Senhora da Glória. Mas é um livro tão pecador quanto os citados acima, os mais cabeludos.

Odair Silva, o autor, parece não girar bem. Tem o rosto grosseiro, voz sussurrada, olhos perdidos longe. É agricultor, peão de fazenda, ganha salário mínimo cuidando de um magote de vacas, de uma pocilga, de um rebanho de cabras e de outras miudezas. Acidentalmente, por conta das terapias artísticas que os médicos lhe receitaram, Odair envolveu-se com um grupo de artistas, chamado Palácio das Artes, coordenado por uma tal de Aparecida, que vem a ser uma Nossa Senhora pelos milagres que vem operando.  

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Há alguns anos, 2013 ou 2014, tive a oportunidade de encontrar Odair Silva num desses eventos culturais dos quais participo na companhia de Domingos Pascoal de Melo, o semeador de literárias. Fiquei junto a Odair, rapidamente, quando saí de uma reunião morna para cuspir na rua. Pensei que ele fosse o vigia do espaço, e o olhei com olhos de arrependimento pelo ato medieval cometido. Conversamos um pouquinho, e corri ao meu carro, que estava estacionado a vinte passos, e dei-lhe “Os Tabaréus do Sítio Saracura”, de minha autoria, o que muito duvido devido às surpresas que me causa a cada leitura que faço.

Aquele leão de chácara troncudo, cabeça de boi brigador, só faltou me abraçar.

A figura de Odair ficou gravada em minha mente, como um sonhador que publicaria um grande livro, o que me disse e fez-me acreditar, naquele fugar encontro acidental de cinco minutos.  

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Encontrei-o, agora, em 2018, em uma Feira Literária, em Nossa Senhora da Glória. Ele chegou no último dia e espalhou livrinhos avermelhados, envolvidos num plástico transparente, em uma mesa, lá no fundo do salão dos escritores. Eu estava de partida para Aracaju quando bati os olhos no dom quixote sertanejo. Atrasei a partida, ultrapassei outras mesinhas no caminho, e encostei no sitio de Odair. Nenhum comprador à vista. Peguei o livrinho, examinei-o. Capa bonita, título instigante. Proibido para menos de 16 anos.

Ele me reconheceu, arrodeou a mesinha como quem limpa uma cova de mandioca nova e apertou minha mão com força. Comprei um exemplar e fiquei observando-o garatujar o autografo, com palavras mal traçadas e em um dialeto basco, talvez. Pedi que me contasse a história do livro. Como conseguiu publicar, eu sabia que ele era paupérrimo. “Minha esposa, que é vice pastora da igreja, pagou 150 exemplares. Depois de me expulsar de casa, me amaldiçoar, voltou atrás e fez o que nunca esperei. Ela havia vendido um terreno e ia doar o dinheiro ao pastor da igreja. Tentei impedir, usei argumentos fortes, briguei. Não fizesse uma besteira dessas! Pelo nosso amor, pelos nossos filhos que, apesar de não serem meus, eu vinha criando como um pai zeloso. Deixasse, pelo menos, um pouquinho para fazer meu livro, que me faria famoso, talvez rico. Eu prometi (todo mundo promete coisas) comprar, como o lucro do livro, uma Hilux e, na qual, todo domingo, a levaria aos cultos, no luxo. Ela me expulsou de casa. Havia influências contra meu pleito. Mas eu abeirei, mandei recados, pedi de novo. Os filhos me ajudaram, surgiram influências favoráveis. Para minha surpresa, eu já estava desistindo, mandou me chamar e deu-me o dinheiro para fazer 300 livros. Eu recusei, não queria tanto assim. Ela me obrigou a receber, mas estabeleceu condições:  jamais trouxesse o livro para dentro de nossa casa (que era dela) e que seus filhos nunca na vida botassem os olhos nele.”

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Li o livro de Odair. Não entendo como a esposa (que estava certíssima) mudou de opinião e resolveu financiá-lo. Ou não acreditou no que as pessoas falavam do livro, ou preferiu fazer os gostos do marido (companheiro) para o bem dela, que amansou o cão perturbador,  e o nosso bem, que ganhamos um bom livro.

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A parteira olhou os colhões do bebê e falou que parecia um boi tourino. Recebeu uma mijada nos olhos. O pai de Martin, orgulhoso pelo filho macho, deu um tiro de bacamarte, matou dois porcos e ofereceu uma festa pros amigos. Pingou sete pingos de cachaça limpa da boca do anjinho e disse que estava batizado pra vida. Foi embora para Mata Grande, em Alagoas, levar a boa nova do nascimento e nunca mais retornou. A mãe esperou três anos, então se amigou com um traste pinguço, pé de balcão, espancador de mulher e de menino, chamado Zé Cacete, o diabo em pessoa. Depois que Zé se foi (tarde demais), arrumou outro traste igual, chamado João Grilo.

Com onze anos, Martin foi pra escola.  Recebeu empurrão e soltou o tapa. Pegou uma briga com a professora que demorou quase uma página inteira. Pegou castigo, pegou suspensão. João Grilo, o padrasto, desce o manguá no moleque, retalhando-o. Martin retornou a escola que o esperava vingativa. Socos, mordidas, pedradas. Briga com um ou com cem. Martin é uma metralhadora alemã. 

Ele não pode ter juízo,  todos dizem.   

Em 1991, com 16 anos, foi internado no Garcia Moreno (hospital de doido). Fugiu vestido de mulher ou morreria na mesa de suplícios.  Saiu pelo mundo e bateu-se com outros manicômios, na Bahia, em São Paulo. Rasgou o alvará que lhe concedia aposentadoria por insanidade, ameaçou de morte (e mataria mesmo) os familiares que queriam botar nele, de novo, uma camisa de força.

Ganha o mundo, vai ao inferno, vira lobisomem, faz um pacto com o diabo. Louvado seja o rei da escuridão! Queria fazer medo a gente ruim, ser rápido como o vento para escapar das malvadezas (talvez). É chamado de mestre Zé Pretinho das Encruzilhada. Deita com os mortos do cemitério para perder cheiro de gente. Vira lobisomem e sai, pela noite escura, aprontando terror. Invisível, dá tapa nas bundas de moçoilas e, como o vento, apaga os candeeiros acesos nas casas de família ou de diversão.  Forró, mulher, cachaça e assombração. Quem dorme com o diabo, apenas cochila.

Amigações, sexos acesos em devassa combustão. A história termina com a baiana, Isabel, cuja buc era uma torquesa e o ping, um martelo. A fama corria mundo. Zezé do Cavaquinho, o marido ocupado com os shows artísticos que fazia, deu a Martin (primo segundo ou terceiro), com 17 anos de perdição, a obrigação de cuidar da esposa. Isabel era uma urna de tesão prensada. Quarenta e cinco anos de solidão contida e de fantasias frustradas. Houve um estrondo no centro da terra, o vulcão explodiu. Lavas incandescentes cobriram cinco páginas de doce devassidão.

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O Escravo do Diabo é um livro surpreendente. O personagem principal, Martim que assume aqui e acolá a primeira pessoa, conta sua vida, suas alucinações, ou sei lá o que mais. Ora o narrador é um aluno de escola e tido como um estorvo. Ora, é o camelô Martin (vendia bijuterias e óculos ray-ban) que se encanta com os palácios de Simão Dias, sustentados nos ombros por negros esculpidos em pedra. Ora, é um devasso possuído pelo diabo, ou o próprio diabo em pessoa. Ora, um zeloso peão de fazenda.

Venha conhecer O Escravo do Diabo. Mas traga um crucifixo e um vidrinho de água benta. Todavia, deixe em casa, guardadas, as armas de defesa.

(Aracaju, 23 de dez de 2018, Antônio FJ Saracura).

terça-feira, 11 de dezembro de 2018

O SILMARILLION, J. R. R. Tolkien,


O SILMARILLION, J. R. R. Tolkien, organizado por Christopher Tolkien (filho do autor),tradução de Valdêa Barcelos, 406 páginas, 5. Edição, 2011, São Paulo, WFM Martins Fontes.




Eu precisava ler Tolkien, que conhecia do filme O Senhor dos Anéis, mesmo mal assistindo. Na época, eu não tinha noção do poder imensurável da prosa do autor e da aceitação irrestrita de sua literatura. Assisti ao filme como a outro qualquer. Até enjoei, em trechos.

Na Bienal de São Paulo (2018) assisti a uma mesa de debates sobre Tolkien e Lewis. Acidentalmente. Eu vinha, com minha esposa, andando pelo corredor imenso em busca de um restaurante para fazer um lance. Moças de preto me seguraram e convidaram para entrar no auditório aberto à minha direita, que nem percebera. Havia uma plateia considerável, toda caracterizada: roupas escuras, chapéus de bicos às cabeças e cruz queimada nos peitos.


Uma hora arrebatado, quase sem respirar, sugando cada mensagem dos cinco palestrantes, jovens, apaixonados, senhores absolutos da obra dos mestres, Tolkien e Lewis. Saí com a determinação de ler Tolkien, furando fila, pulando outros grandes autores que me esperavam. E dar uma olhada em C. S. Lewis, pelo menos, em reconhecimento pela amizade que manteve a vida toda com Tolkien.
Após a Bienal, já em Aracaju, escrevi algumas linhas nas considerações sobre a Bienal de São Paulo, que transcrevo:
Entramos, curiosos. J. J. Tolkien e C. S. Lewis simplesmente desceram do céu e vieram apertar minha mão. Os cinco especialistas na obra desses magos conseguiram este feito espetacular. Na vasta linha do tempo sempre tem mais e mais. Amizade, Hobits, Elfos, Hurins, Anéis, varas, profundidade e detalhamento, provérbios, valores... Fantasia que faz pedras como eu pular no unicórnio e varar o mundo.”

Na livraria Escariz, em Aracaju, logo que pude, bati-me com as obras de Tolkien. Inebriado, hipnotizado. Ante uma constelação de reluzentes estrelas que ao mundo todo encanta, precisava escolher uma estrela para pousar, com minha nave peregrina. Silmarilion me pareceu a origem, a raiz mais profunda, a partir da qual, transitar na constelação ficaria mais maneiro.

O livro não foi publicado em vida do autor mas sempre esteve escrito desde o início. Serviu de base aos livros que Tolkien produziu pelos anos. Há um pouco de Silmarillion em toda obra, inclusive nos livros infantis. Foi organizado pelo filho Christopher e contém mais de 400 páginas de textos intensos, mapas das locações geográficas, glossário salvador, gramática sintética das línguas utilizadas ou referenciadas. O glossário consistiu na minha salvação, pois, sem ele, eu teria jogado o livro no mato logo.

Melkor aparece do nada, com dons e conhecimentos invejáveis. Carrega na cabeça a coroa de ferro do mal e causa estragos imensos por milhões de anos a fio, até ser dominado e preso sem nenhuma chance de escapar. Mas foi perdoado e voltou a aprontar. O pecador sempre desfruta de concessões que não compreendemos. E foi outra vez derrotado, mas antes, criou e treinou Sauron, poderoso preceptor, repleto de artimanhas, maldades e poderes, que causou dissidia e abusou da boa-fé dos bons. Menos maligno do que seu senhor, mas, nos anos posteriores, especialmente com a construção dos anéis do poder, causou estragos imensos a homens, elfos, anões e aos próprios Ainur, aos Valar e aos Maiar, que eram os imortais habitantes do mundo muito antigo. Estes morriam de morte matada apenas (kkk).

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Deparei-me com línguas estranhas, nomes de personagens que se confundem com raças, e raças (Elfs, Orcs, homens, anões...) que, de acordo com a época e a região, ganharam diferentes nomes que me confundiram até quase ao fim de livro. Guerras terríveis, primeiro entre o bem e mal, depois entre segmentos do próprio bem envolvendo até os abençoados de Ilúvatar (ou Eru), o Deus Pai. Cadeias de Montanhas, vales, rios, fozes, florestas, todos com múltiplos nomes, a cada momento. De acordo com as linguais faladas em cada região, em cada agrupamento. Aguente Saracura! Quem mandou meter-se com Tolkien, doutor em línguas primitivas da Oxford University?

Diante de tantas variáveis, a leitura corre devagar, com idas ao Glossário e ao Google, com retrocessos para espiar outra vez: que luz era aquela pela qual passei batido duas páginas atrás.

A cada frase, o autor nos surpreende com situações e pensamentos que poderiam, de afogadilho, ser tomadas por clichês, mas que se encaixam na drama, magnificamente. Toda escrita de Tolkien é minada de links para mais e mais mundos, significados. Como se em cada uma frase nascesse um novo romance. Não sei bem se para complicar ainda mais esta confusa resenha, mas há um poder superior que me manda nomear algumas dessas colocações. Que seja para o bem ou para o mal de meu conceito insignificante com o leitor.

“E Melkor disfarçou seus objetivos com astúcia, e nenhuma malignidade podia ser vislumbrada no semblante que ele apresentava.” (página 74).
“Amargo foi o preço pago pelos noldor (os elfos profundos), nos tempos que se seguiram, pela tolice de manter os ouvidos abertos.” (página 74).

“Abateu-se, assim, sobre Valinor (a terra dos valar (aqueles que tem poder) em Aman (o reino abençoado dos Valar)) uma grande escuridão. A luz desapareceu; mas a escuridão que se seguiu era mais do que a falta de luz.” (Página 85).

“Da bem aventurança e da alegria há pouco a se falar enquanto durar. Somente quando correm perigo ou são destruídas é que se transformam em poesia.” (página 110),

“Nesse momento, Gorlin (o infeliz, um dos doze companheiros de Balahir (pai de Berem que arrancou uma Silmarillion da cora de Morgoth) em Dorthonion (Terra dos Pinherios) teria recuado, mas, intimidado pelos olhos de Sauron, contou tudo que ele queria saber.” (Página 204).

“Sauron forjou anéis do poder, e guardou para si o Um, que lhe dava o poder de perceber tudo o que era feito pelos anéis subalternos, e ler e controlar até mesmo os pensamentos daqueles que os usavam. E os anéis subalternos foram entregues (Sauron os obrigou receber) assim: sete aos anões que finalmente eram um grande povo; aos homens deu nove. E o grande olho mau controlou o mundo?” (Página 388).

“Ao homens a chegarem chocaram os elfos pelo jeito estranho do agir: se armavam e se matavam uns aos outros por motivos insignificantes; Ficou fácil para Sauron ou para aqueles que que ele recrutara para si. Percorriam a Terra, instigando um homem contra o outro. Assim, o povo murmurava contra o Rei e contra os senhores ou contra qualquer um que tivesse algo que eles não possuíssem. E os homens dotados de poder se vingavam com crueldade.” (página 349).

“O rei Felagund (o senhor das cavernas) soube dos homens de Beor (O velho, chefe dos primeiros homens a entrar em Beleriand) e assim falou: homens derrubam árvores e caçam animais. Portando não somos seus amigos. Se não quiserem partir, nós os atormentaremos de todas as maneiras.” (página 176).

Os humanos viviam apenas 400 anos, o que era um nada ante o que viviam os elfos, que eram eternos. E os humanos sentiram que isso era uma injustiça. Iluvatar criou uma terra de morte rápida e felicidade escassa para os homens, diziam. E eles foram reclamar ao Rei, que os criticou: 

"Vocês são felizes por isso. Podem viver intensamente, aproveitar ao máximo o pouco que lhes sobra da vida. Não se acomodam na eternidade que se transforma em monotonia. Se fossem imortais vocês murchariam, se cansariam mais cedo, como mariposas numa luz muito forte e constante.” (Páginas 336 e 337). 

Algumas vezes na vida, eu fiquei pensando em pessoas que conheci ou ouvi falar que encantaram a todos pelo que fez em vida, achava que elas deveriam ser eternas. Pelo menos, podiam ter uma vida longa. Uma pena terem morrido tão cedo, como Luiz Antônio Barreto, Pedrinho dos Santos. Só para citar duas recentes perdas.

“Portanto, em tempos posteriores, fossem com as viagens marítimas, fossem com as tradições e conhecimentos dos astros, os reis dos homens souberam com efeito que o mundo se arredondara (rota curva) e que, mesmo assim, aos elfos (criatura mística da mitologia nórdica e céltica, o povo das estrelas ) era permitido ir e retornar a Avalonè (porto da cidade dos eldar em Tol Eresseae, a Ilha solitária) se quisessem... Uma rota plana deveria ainda existir para aqueles a quem era permitido encontrá-la. Marinheiros perdidos entraram nessa rota plana (proibida aos homens) por uma sina ou por concessão dos Valar, e viam a superfície do mundo sumir abaixo deles. Antes de morrer, contemplaram a Montanha Branca, bela e terrível.” (página 359).

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Mesmo narrando a vida em milhões de anos, o livro tem personagens que estão presentes da primeira à última página, como Ilúvatar (O maior de todos), ou como Ulmo (o senhor das águas, o rei do mar), Melkor (o mal maior), Sauron (o secretário das ruindades)... E tantos outros que não me cabe aqui citar para não espantar um provável leitor.

Apesar de Simarillion ser cansativo em extensos trechos, gostei de ter lido O Silmarillion, foi como ter convivida com os seres que não eram ainda nem gente nem peixes nem nada, apenas uma gosma cósmica. Senti-o um pouco como o Gênesis, do velho Testamento. Entretanto, bem mais estendido.

Nem mal acabei Silmarillion, comecei Reverandom, uma fábula infantil, também de autoria de Tolkien. Já que não posso passar um mês na praia em “Filey”, preciso de um refrigério.

Você se lembram dos bonequinhos do jornal O Globo (?) que avaliavam os filmes? O Silmarillion recebe dois bonecos; um sentado cochilando e outro vibrando de pé.

Antônio Saracura, Aracaju, 30 de novembro de 2018)

domingo, 16 de setembro de 2018

VALIDANDO IDEIAS, Domingos Pascoal de Melo



VALIDANDO IDEIAS, Domingos Pascoal de Melo, Aracaju, Infographics, 2017, 186 páginas, isbn 9 78.859.476. 098.2



Sou amigo íntimo de escritores espalhados pelo mundo. A maioria nem vive mais na terra. Confabulo com os personagens de suas tramas, fecho a cara para os maus e abro-me com os bons. Saio das obras e converso com os autores: conto-lhes meus sonhos, eles riem. Vibro quando os encontro nas livrarias ou assisto a filmes baseados em suas obras. Ao escutar alguém falar deles, curto um silêncio de glória, minha voz embarga. Lamento não os ter em meu mundo real, desfrutar o ar que os fez criar obras maravilhosas.
Lamento mas me contento. Contento-me porque, aqui em meu mundo, há também monstros que me encantam. Domingos Pascoal de Melo é um deles. 


E tenho a sorte de conviver intensamente com este incansável semeador de academias de letras. Sou seu acólito atento nessa semeadura. Conheço momentos de sua vida, desde a origem humilde nos cafundós do Ceará até a luta de hoje em meu ingrato Sergipe. O que fazer nas estradas longas para mantê-lo acordado ao volante, se não o instigar a contar-me suas aventuras, que dão mil romances?
Escuto suas palestras, leio seus livros, os artigos nos jornais, as crônicas nas revistas...

Gostaria de ler muito mais, como os prefácios espalhados em obras de autores que lhes pediram um. Mas é uma missão quase impossível, são tantos livros espalhados que nem os autores sabem mais o paradeiro.

Agora ninguém mais precisa buscar muitos livros para saborear os prefácios de Domingos Pascoal de Melo. Basta este livro! Aqui, eles revelam a nobreza do semeador de academias e dão boa notícia a respeito das obras que Pascoal recomendou e que circulam por aí.

O livro contém 29 crônicas (ou ensaios literários) tratando de livros publicados e que coube a Pascoal escrever o prefácio, conforme já explicitei. 
Começa com o bom “Ecos de Lagarto e sua Gente”, passa pela “A Magia de Conta Histórias” de Antenor Aguiar, “Um voo sobre Frei Paulo”, de Carlos Magno Andrade, e muitos outros.

(O texto acima compôs a contracapa do livro citado).

(Aracaju,17 de setembro de 2017)

domingo, 9 de setembro de 2018

O LIVRO BRANCO DA FOTOGRAFIA, Robério Santos


O LIVRO BRANCO DA FOTOGRAFIA, Robério Santos,






(Por Adail Vilela, publicada no facebook em 09nov2013. Peço a devida licença ao autor para me deixar guardar sua bela crônica aqui junto com as que escrevo sobre livros lidos).




Fosse minha intenção apresentar, resenhar ou discutir mais uma obra de Robério Santos poderia perfeitamente cumprir tal objetivo reproduzindo a Apresentação do livro, da autoria de José de Almeida Bispo. Acreditem, é uma obra em si. Para quem só acredita vendo (ou lendo) segue um trecho: “(...) cada imagem desta aqui exposta (...), convido o leitor ou leitora a bem observá-las; porque nem sempre é possível exprimir-lhes a grandeza através das palavras. As imagens estão postas; seus sentimentos são quem vão nortear a sua interpretação delas.” Então?

Minha modesta pretensão é só prestigiar mais um exemplar da literatura sergipana, demonstrando, como tanto insiste Saracura, por exemplo, que o autor merece uma leitura e, sempre que possível, um retorno, uma opinião sincera, um gesto de alteridade.

Não por acaso o livro de Robério tem por epígrafe o icônico Robert Capa e a dedicatória a Teixeirinha, Percílio Andrade e Joãozinho Retratista; quem conhece o autor sabe que se trata de um apaixonado pela Fotografia, e grafo em maiúscula porque é neste sentido de Arte que estamos nos referindo. Para que as imagens publicadas tenham a importância atribuída pelo autor dimensionadas, basta dizer que ele delimitou dez anos de atividade (2002/2012), avaliou quase 20.000 fotos de sua autoria e selecionou 58, associando cada uma a um comentário.

Posso estar enganado, mas esta brutal seleção, com seu resultado (amostra correspondente a menos de três milésimos do universo original), remete ao título, o qual me pareceu uma referência ao famosíssimo Álbum dos Beatles. E, comparando as duas capas (do Álbum e deste livro) enxergo também uma crítica cultural literalmente emblemática, bem como um posicionamento ético denunciador das desigualdades sociais. É a minha opinião...
Voltando ao livro, um detalhe que me chamou muito a atenção é que todas as fotos são nomeadas e datadas: é preciso que o Fotógrafo seja também um Professor, para ter este senso de agente histórico. 

O futuro agradece.

A minha imagem preferida (todos terão a sua, claro) é “Juventude”. Além do desafio técnico de fotografar todas as 16 crianças em pleno ar, a imagem para mim refletiu o atendimento dos clicados a um desafio maior, bem como a confiança tanto em suas capacidades quanto no guia (o Fotógrafo). Sensacional.

Ah, adorei rever o Saracura. Será que ele também adorou o título da foto em que é co-protagonista (Tabaréus)?... Acredito que todos saibam, mas não custa relembrar que o livro (por enquanto) mais conhecido de Antônio Francisco de Jesus, o Saracura, é TABARÉUS DO SÍTIO SARACURA. O nome da foto, portanto, pode conter uma referência literária, uma homenagem, uma brincadeira, ou tudo junto... em uma só palavra!

Na foto do “Tremendão da Serra”, eu pensando que o autor destacaria a cebola, mas ele salienta o Beto Silveira... Estes comentários singelos são apenas para que o leitor vislumbre a riqueza do conteúdo à sua disposição... maiores informações, IN LOCO (lendo o livro).

(Adail, Vilela de Almeida, Em 09/09/2013)             
                              
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Saracura respondeu à crônica de Adail no facebook, na época:   
Adail, você tem o fôlego de sete gatos e a energia de Paulo Afonso, Xingó e de cinquenta saracuras.
Sinto o facebook muito mais interessante, com suas publicações sobre literatura.

Os livros publicados, os nossos livros ignorados pela mídia, esnobados pelos leitores da moda, menosprezados pelos nichos pedantes estão parecendo agora com os americanos que a Veja e nossa mídia anunciam nas suas colunas nobres.

Apenas um cidadão (você) com poucas publicações (essas resenhas) já mudou o clima para melhor.
Nós que escrevemos, damos vivas, porque alguém tem o que dizer sobre os livros que vem sendo publicados. Alguém (mais alguém) está quebrando a indiferença absurda, o ouvido de mouco que tanto magoa quem publica: Adail Vilela de Almeida, Robério Santos e todos que transitam por essa estrada.
(Por Antônio Saracura, em 09/09/2013)


domingo, 2 de setembro de 2018

COISAS DA VIDA, Luiz Carlos Andrade


COISAS DA VIDA, Luiz Carlos Andrade, editora Infographics, 2018, 148 páginas, isbn: 978-85-9476-146-0


(Resenha de prefácio)

Iracema, sua mãe, é filha de Felismino, que é filho de Nanã, que é filha de João José de Oliveira, um patriarca quase bíblico, que chegou ao Brasil em meados do século dezenove. De Itaporanga, foi à São Cristóvão, semeou-se em Estância e, por fim, instalou-se numa aldeia de índios mansos e redondos, em Itabaiana. Plantou a nação dos ferreiros, que, além de Oliveira, carrega brasões de Pereira, Santos, Andrade, Monteiro, Teixeira, Machado e outros que se agregaram por uniões ou apenas por gosto.

Os Ferreiros!

Trabalhadores incansáveis, artistas do ferro, do fogo e do ar. Um povo alegre e cheio de histórias espetaculares. Os antepassados passavam os dias na lida árdua das forjas, das malhadas, nas soltas de gado, nas oficinas de arte... E, nas bocas de noite, sentavam-se à luz do candeeiro ou da lua, contavam histórias de seus maiores e dos próprios feitos. Ulisses e Homero concomitantes.

E hoje, seguimos o mesmo rumo. Trabalhamos em consultórios médicos, em salas de aula, em bolsas de valores, em laboratórios, em fábricas de softwares... E quando surge uma brechinha, contamos histórias de nossa gente em livros e nas redes sociais. O mundo mudou, informatizou-se. Ninguém tem tempo de falar nem de ouvir.

Que leia então!

E que leia este livro, o segundo de autoria do médico Luiz Carlos Andrade. Crônicas do dia a dia, do duro passado e de muito mais. Elas trazem a sisudez respeitosa e a suspeita. Pureza aqui e malvadeza ali. Sérias, irônicas, mordazes. Minam humor. Gargalhadas pela graça. Lágrimas pela emoção. Tudo junto em uma prosa fácil de ler, fácil de entender, fácil de gostar.

São momentos de uma Itabaiana povoada de heróis e anti heróis (todos festejados do mesmo jeito): A micareta e suas figuras inoxidáveis, o guaxinim Fefi caracterizado de mágico e dono de uma fábrica de tentação, o desbragado Maceta de Zé Bigodinho que bebeu todas e aprontou o imponderável: viveu um nadinha mas intensamente.

Mergulho nos sonhos da criança pobre que tenta participar da cerimônia do lava pés até perceber que a fila o faria rapaz antes; quer que papai Noel coloque o presente de Natal na sandália de sola. Dupla perda de tempo, se bem que um doce sonho.

Aprendizado em feitiçaria que todo menino precisa ter para jamais temer despachos em encruzilhadas. Placas trocadas colocam em parafuso o Murilo Braga, e os mortos enterrados no Cemitério das Almas. Ao retornarem da ronda da madrugada pela cidade, encontram seus leitos cheirando a outro defunto. Era a véspera de um dia de Finados conturbado!

Nem a mãe, Iracema, nem o tio Daniel (o maior tribuno da família), nem o avô Felismino para segurar a mão. A serpente pisca o olho com malícia. Depois, vem Maceta, agente da Policia Federal, para o resgatar do paraíso do prazer: Boate Bambu.
E esse professor Rivas, magro como um palito de coqueiro e elegante como um arcebispo em missa solene? Voz nasalada, fanhosa e molhada; ao falar emite gotas de orvalho para todos os lados. Gepeto pediu um formão afiado a Collodi e traçou o professor tão bem que parece real.
O velho gavião fareja carne, levanta voo, vai a caça. Ou se não vai, ela é trazida por amigos que irrompem ao consultório causando transtorno: A Mulher do Shopping, O Feitiço Saiu pela Culatra, A garçonete Zipper.
Luzes são acendidas sobre Felismino, Iracema e os filhos que nascem. Claridade bastante para penetrar nas carnes e pecados, nas almas e santidades. Como médico cirurgião criterioso, disseca cada célula; como psicólogo dedicado, bota sentimentos pelo avesso. Crônicas que valem um romance. Que me fizeram chorar e que me encheram de orgulho por ser também um Ferreiro da Matapoã, que penso que sou. Preciso repetir os títulos? Felismino Fogueteiro, Iracema de Felismino, o Primeiro Filho e os Últimos Dias. Não me custa nada. Para você querer ler! Para você nunca mais esquecer!

(Aracaju, junho de 2018, Antônio FJ Saracura, escritor, das academias Itabaianense e Sergipana de Letras).



terça-feira, 1 de maio de 2018

A TORRE DA MATRIZ E OUTRAS HISTÓRIAS, João Paulo Araújo de Carvalho



A TORRE DA MATRIZ E OUTRAS HISTÓRIAS, João Paulo Araújo de Carvalho,2018, 420 páginas, ilustradas, Infographics, isbn 978-855-551-24525

Sobre um povo abençoado



Com tanta história esquecida aqui, correndo o risco de se perder definitivamente, por que nossos historiadores pesquisam as façanhas de Preste João, imperador da Etiópia e descendente do rei mago, Baltazar?

Sergipe, Itabaiana, Dores, Terra Vermelha, Bravo Urubu, Massaranduba, Borda da Mata, Gado Bravo, a sombra dos Enforcados, a Torre da Igreja Matriz, a cruz seca que nasce na encosta íngreme, a batina cerzida do vigário, a imagem remendada de nossa senhora...

Cada um desses temas pode gastar a vida inteira de um historiador e será bem gasta, mesmo que não esgote o assunto, que gere apenas pacotes de documentos ao historiador que um dia virá.

Eu falei acima em Torre da Igreja Matriz...

Esse é o título (apenas parte dele) do novo livro de João Paulo de Araújo Carvalho, historiador de mão cheia. Com a língua presa, jeito manso e ar sonso, ele possui garras de toupeira. Vara o centro da terra onde a magma ferve, se desconfiar que lá habita algum sinal de seu povo.

Nossa Senhora das Dores (Vila dos Enforcados) é o campo onde João Paulo deita e rola, desde muito, até antes do espetacular Memória, Patrimônio e Identidade (2012), e mesmo antes da “Freguesia de Nossa Senhora das Dores, 150 anos de história e devoção” (2008) que este, agora, expande e aprofunda...

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João Paulo mandou-me um calhamaço virtual e eu retirei o véu, descasquei a primeira palha. Pra que? Nunca imaginei que havia tantos caroços nessa espiga de milho, nesse milharal a perder de vista. Pela cor, milho maduro. Na verdade, ouro puro. A história de um povo religioso, que eu nem sabia que fosse tanto. Escrita sem subterfúgios, com segurança, justificando cada rito, contextualizando-o à doutrina cristã e à história da humanidade.

João vasculhou os arquivos, entrevistou as pessoas sábias que viram o passado. Cavoucou cemitérios, leu lápides, examinou imagens de santos e as marcas que a história deixou nelas. Desvendou a alma de Itapicuru, Bravo Urubu, Sapé, Cajueiro, Borda da Mata, Massaranduba, Gado Bravo, Taborda... Não se limitou a narrar o mundo da atual fé de seu povo, foi às raízes: ao Deus de Abrahão, aos profetas do Velho Testamento, aos teóricos da doutrina, aos vigários que cuidaram da plantinha tenra. Mostrou-nos a personalidade de um povo bravo que enfrentou e venceu adversidades: o enforcamento de seus maiores, secas terríveis dos três sete, cólera, malária, a impiedosa febre amarela...

Resgatou dados tidos como perdidos e construiu um texto rico em depoimentos. Quando descreveu as festas, foi à origem pagã: Quaresmas, Sextas-feiras da Paixão, Semana Santa, Matracas, Lamentações, Penitentes... Quando invocou santos padroeiros, contou-nos a vida exemplar que levaram e os milagres que fizeram.

Revelou nomes de pessoas que fez e faz do povo dorense um povo singular: Padre Fenelon da Costa, monsenhor Marinho, Monsenhor José Curvelo, padre Joselito Santana, Ioiô de Dominguinhos, Ariston Azevedo, Pajaú do Madeiro, José Lima Santana, Manoel Cardoso...

A Torre da Matriz & Outras Histórias é um livro denso. Apenas outro livro, talvez mais denso ainda, poderia dissecá-lo adequadamente. Uma lauda não dá conta da dimensão dessa torre, dos templos espalhados nos povoados, das irmandades, dos rezadores, benzedeiras e parteiras, das botijas, da cultura popular, da memória e religiosidade, dos natais de outrora, do vandalismo, dos cangaceiros fugindo assombrados... Não dá conta do valor dessa respeitável obra sobre um povo místico, abençoado.


(Aracaju, 28 de janeiro de 2018, da pré-leitura solicitada pelo autor)






domingo, 4 de março de 2018

A morte de um grande jornalista: Clarêncio Martins Fontes


A morte de um grande jornalista


Atrasei a cota que depositava todo mês para ajudar Clarêncio Martins Fontes no pagamento do aluguel da casa humilde onde morava. E ele não me ligou reclamando, como costumava e não atendeu meu telefonema, no qual pretendia me desculpar pelo atraso.

Clarêncio morava em uma casa deteriorada na rua Carlos Burlamarqui, no trecho ocupado por revendas de automóveis e que morre, mindinho, na avenida Coelho e Campos. Um local complicado para estacionar.

Aproveitei a terça-feira de carnaval e fui saber o porquê do silêncio do jornalista. Certamente não faltariam vagas para estacionar, já era comecinho da noite de um feriado.

A casa de Clarêncio estava fechada como de costume. Havia um  casal, na calçada da casa vizinha conversando. Cumprimentei-o e perguntei se o jornalista Clarêncio estaria em casa. É que a luz da sala da frente da casa dele não estava acesa, como de costume.

O senhor, que presumi ser o dono da casa vizinha, disse-me que o jornalista havia falecido mais ou menos às duas da tarde e o seu corpo acabara de sair ao IML. 

O casal,então, passou a narrar o sufoco por que passou naquela tarde, envolvido pela morte do vizinho:

“A esposa do jornalista, que parece ter problemas mentais, saiu à rua pedindo socorro, por volta da duas da tarde, queria uma ajuda para levantar o marido do leito. Nós estávamos à porta e nem pudemos escapar, ela postou-se à nossa frente. E trazia na mão um papel onde estava escrito um número de telefone de outro Estado. Mas incompleto, com apenas quatro dígitos. E queria que ligássemos... E alguém viria socorrer o marido.
Resolvemos ver o que acontecia dentro da casa misteriosa.
O jornalista e a esposa não se relacionavam nem conosco nem com os demais vizinhos. Sempre ele saía pela manhã e retornava depois de meio-dia com pacotes, jornais e livros. Sabíamos que era um intelectual de renome. Sempre apareciam crônicas com sua assinatura nos jornais. E a casa, víamos de relance ao passarmos em frente, era atulhada de livros e revistas. A esposa vivia presa, embaixo de chave, atendia às raras visitas através da grade do portão de ferro.

Desconfiávamos que ele poderia estar enfermo, não o víamos sair nos últimos quinze dias. Um senhor que mora mais adiante na rua, a dois trechos, um serviçal faz-tudo a todos, talvez o único com quem o jornalista se relacionava regularmente, vinha toda pela com uma penca de bananas e a fazia passar pelas grades do portão de ferro. O casal devia estar se alimentando, ultimamente, disso.
Entramos na casa entulhada de livros.

O jornalista jazia em um catre, morto.

A esposa entendia a gravidade da situação. Fora da realidade, não dizia nada com nada. Suas respostas não batiam com as perguntas que agoniados fazíamos.

O que fazer?

Nada conhecíamos parentes, pouco sabíamos até do casal que habitava na casa vizinha há mais de dois anos...

Encontramos uma agenda jogada sobre um monte de livros e ligamos para números, mas nenhum atendeu. 

Havia junto, um carnê da Osaf e, pelo que observamos, com prestações em atraso.

Resolvemos chamar o Samu, mesmo sabendo que o jornalista estava morto. Íamos ligar ao 190 da polícia, mas uma viatura passava na rua. Demos a mão, gritamos, corremos impedindo que fosse embora.

Ai então, lembramos do faz-tudo da rua, o que morava dois trechos à frente. Ainda bem! Ele sabia o número do telefone de uma sobrinha do jornalista. Ligamos, avisando do ocorrido. Daí a pouco, chegaram a sobrinha, chamada Helena, e uma irmã, chamada Mabel: surpresas, assustadas.

Nem o Samu tinha o que fazer, nem a polícia, mas esta ficou conosco até agora há pouco.

O comandante da patrulha policial definiu que o corpo do jornalista seria guardado no Iml por não haver outro local possível. A família iria, no dia seguinte, resgatar o corpo e cuidar das burocracias, do velório e do sepultamento.

E a esposa de juízo fraco?

Alguém teria que ficar com ela.
Todos olharam para a irmã, dona Mabel. Ela recuou e disse que não podia hospedá-la em sua casa nem um dia. Por fim, não houve alternativa e a viúva foi com a cunhada mesmo”.

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Eu escutei tudo e liguei a Cleiber Vieira, presidente da Associação Sergipana de Imprensa, ASI, para decidirmos o que melhor fazer em apoio à família. Ele atendeu ao telefonema, estava enfermo e não possuía contatos da família de Clarêncio. Iria localizar a secretária que estava no interior gozando a folga do carnaval.

O vizinho que me contou a história não reteve o contato e, na agonia do momento, nem me lembrei de procurar o faz-tudo do trecho...

Liguei a pessoas que eu sabia mais próximas do jornalista avisando da morte. Poucos atenderam, todos estavam viajando ou impedidos por algum motivo.

Postei mensagem nas redes sociais.

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No dia seguinte, Quarta-feira de Cinzas, por volta da dez horas, como ainda não localizáramos a família, fui ao Iml. O corpo estava lá, liberado, mas ninguém havia ido buscar. Apenas a família podia retirá-lo.

Fui então à Osaf, seguindo o carnê em atraso. Na secretaria, me informaram que alguém estava vendo o assunto Clarêncio no setor de Assistência Funeral. Ao correr ao setor, vi duas senhoras saindo, caminhavam em direção a um carro estacionado no outro lado da rua. Fui atrás e perguntei se eram gente de Clarêncio. Eram. A sobrinha, Helena, e a irmã, Mabel. Já haviam se acertado com a Osaf: o enterro seria à tarde no São João Batista. Estavam indo ao cartório registrar o óbito. Iriam ao IML, depois, retirar o corpo. Não precisavam de minha ajuda. Me ligariam informando a hora do enterro, para que eu avisasse aos amigos e colegas dele. 

Participei ao presidente da ASI e postei a informação nas redes sociais.

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Às três horas, a sobrinha, Helena, me informou que o enterro seria as 16 horas. Passei a informação em frente.

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As quatro horas, chegou o carro da Osaf ao São João Batista com o corpo de Clarêncio. O enterro foi feito sem delongas. Estavam presentes, cerca de oito pessoa da família e quatro jornalistas da ASI e da Academia Sergipana de Letras.

Na saída do cemitério, ao portão, fiquei próximo a Mabel, a irmã de Clarêncio que conheci pela manhã na OSAF. Perguntei pela viúva. Ela, com a voz trêmula, disse:

“Está lá em casa, mas eu não tenho condição nenhuma de hospedá-la. Telefonei para um parente dela em Salvador, pedindo que venha buscá-la logo. Estou com medo de não vir”.

Desatou a chorar.

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Na missa de sétimo dia, a igreja do Salesiano estava lotada. Eram várias intenções, mortos de numerosas famílias. O nome de Clarêncio foi lido pelo sacristão ao final de uma lista longa; pensei que nem seria mais. Mesmo assim, estavam presentes, membros da Academia Sergipana de Letras, da Associação Sergipana de Imprensa (ao todo, quatro pessoas) e uma quantidade significativa de parentes (irmãs, sobrinhos e amigos da família e do jornalista; calculei que doze pessoas).

Ao final da missa, fui ao banco onde estava o povo de Clarêncio, bem à frente, o primeiro banco do átrio. Mabel já me conhecia desde o dia do sepultamento e me apresentou à outra irmã, sentada ao lado, que eu ainda não vira. Ambas idosas, acredito acima dos setenta, maltratadas pela vida ingrata mas ainda deixando transparecer uma beleza ariana admirável. Mabel e a irmã falaram, ao mesmo tempo, talvez querendo conquistar minha admiração ou mostrarem-se valiosas:

“Nós duas somos poetisas também. Saímos ao nosso pai e ao nosso irmão!”.

Eu não soube o que dizer, não podia turvar o orgulho declarado. Fiquei, um momento, atônito, e, por fim, não achando nada a comentar, perguntei pela cunhada, a esposa de Clarêncio, à qual Mabel acolhera e me confessara, sete dias atrás, que não teria nenhuma condição de sequer hospedá-la. 

Mabel olhou-me com dois olhos claros, marejados de aflição:

“Está lá em casa ainda. Deus me ajude! A família dela não deu notícia. Não sei o que será de mim e nem da pobre coitada que se imagina uma rica princesa”.

Baixou a cabeça chorando.

(por Antônio FJ Saracura, admirador do jornalista Clarêncio M Fontes).

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Post Script:


CLARÊNCIO FAZIA PANEGÍRICOS A TANTOS E MORREU ABANDONADO
 (Jornalista Luiz Eduardo Costa, no blog, em 17/02/2018: 



Clarêncio Fontes era filho de poeta, o modernista acanhado José Maria Fontes. O pai, foi um homem descuidado com ele mesmo. Excêntrico e ensimesmado, passou anos e anos encafuado na sua casa humilde, quase nas areias do Carro Quebrado, onde acabava a Rua de Lagarto. Com mulher e filhos, abandonava-se à solidão, partilhada com as centenas de rãs que tinha soltas pela casa e também delas se alimentava. Clarêncio criou-se ali, vendo o pai acumulando livros, muitas vezes lendo-os à luz do poste, quando a energia era cortada. Mas Zé Maria tinha a segurança, pelo menos de um modesto emprego público. Clarêncio, seu filho, foi também poeta, herdou os livros do pai, (existiria melhor herança?) a eles acrescentou tantos outros e colecionava papéis, revistas, jornais, futucava arquivos, hemerotecas, bibliotecas. E escrevia bem. Embora preferisse o estilo barroco. Esse acervo, que era também estorvo, o acompanhou na sua decadência.
  Clarêncio nunca teve emprego certo. Foi algumas vezes redator em jornais e emissoras de rádio, mas o álcool o tornava inconstante e logo perdia os meios de sustento. Levou uma vida de sacrifícios e carências. Foi encontrado morto, já tardiamente, enquanto sua esposa doente ao lado nada podia fazer. Ao seu enterro compareceram 4 pessoas, entre elas o escritor Saracura. Morreu silenciosa e humildemente, como silenciosa e humilde foi a sua vida. Fez panegíricos a tantos e todos o deixaram abandonado.
  Registre-se aqui, ressalvadas possíveis omissões, que teve amigos como Kleiber Vieira, o procurador Givaldo Rosa, tantos outros na Academia de Letras, que por vezes o socorriam. Mas, a Clarêncio teria faltado alguma coisa, assim como, sei lá, quem sabe sobre a alma humana, sobre essa coisa chamada destino...
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Enéas 4 de março de 2018 17:23 email Para: Antônio Francisco de Jesus Saracura 
"Caro Saracura:

Que tristeza, meu caro! Que final triste para um jornalista e intelectual de tanto talento! Só falei com ele duas vezes mas o tinha como um amigo. Também trocamos algumas cartas. Lamentei muito, muito, muito. Ainda mais pela forma melancólica como faleceu e tudo que veio depois. Meus parabéns pela sua solidariedade! É por ela que se mede um homem. Pensarei nele, recordando-o, pois, como disse alguém, as pessoas não morrem enquanto são lembradas. Que descanse em paz o bom amigo! Grande abraço do ENÉAS ATHANÁZIO, escritor catarinense (Camboriu).